Interrupção voluntária da gravidade
Gostava de alterar alguns aspectos da personalidade de base dos portugueses. Gostava que revíssemos a nossa auto-imagem marcada pelo pessimismo, que faz do fado a canção nacional e do Benfica o clube do povo. O mais difícil de alterar num povo não é a sua modernização tecnológica ou a instalação de novos hábitos de consumo, é conseguir mexer nos seus funcionamentos enraizados, nos seus tiques milenares, na sua mentalidade ancestral, que nos trabalha por dentro e nos faz ser sempre na mesma. (...)
Mas era também neste sítio, neste nó central da alma lusa, que eu
gostava de intervir - por exemplo, fazer de nós gente descontraída e capaz de se rir de si própria. (...)
Há um nevoeiro fino que nos cobre a alma, muito provavelmente anterior a D. Sebastião, e que nos impede e ata. Somos cinzentos e olhamos com desconfiança os luminosos - é por isso que, no fundo e por entre disfarces de simpatia fraterna, dizemos mal dos brasileiros. (...) Sisudos como somos, nunca chamaríamos Lula a um presidente. Há em cada um de nós um pouco de mãe de Bragança, um pouco de bispo de Braga, um pouco de Manuela Ferreira Leite.
Enquanto os tropicais aguardam com alegria a festa do solstício, a bebedeira em nome duma divindade, as danças e os banhos tépidos ao luar, nós aguardamos por mais um ano de contenção, por mais últimos lugares no "ranking" da UE, por mais um discurso de Paulo Portas. Não há alegria que conviva com isto, não há optimismo que resista - e era isto que eu queria mudar. Era este o pedido à fada para 2004. Mas em Portugal não há fada, só há fado. E tudo é um fardo e um lamento pegado.
E por isso a nossa linguagem popular está crivada de queixumes e de preces à Virgem. E mesmo a esta, que devia ser sorriso e esperança, chamamos-lhe Senhora da Agonia, da Boa Morte, dos Aflitos, do Perpétuo Socorro. Só num país mesmo muito pessimista o socorro, em vez de ser uma coisa de surgimento súbito e relativamente rara, é perpétuo. (...)
Ufa! Alteremos, pois, este destino feito de seriedades e de gravidades. Vamos aligeirar, vamos descontrair o gesto, desenrugar a testa - em nome do futuro. Vamos, enfim, fazer uma interrupção voluntária da gravidade.
Por LUÍS FERNANDES. Público, 07/01/2004.
Mas era também neste sítio, neste nó central da alma lusa, que eu
gostava de intervir - por exemplo, fazer de nós gente descontraída e capaz de se rir de si própria. (...)
Há um nevoeiro fino que nos cobre a alma, muito provavelmente anterior a D. Sebastião, e que nos impede e ata. Somos cinzentos e olhamos com desconfiança os luminosos - é por isso que, no fundo e por entre disfarces de simpatia fraterna, dizemos mal dos brasileiros. (...) Sisudos como somos, nunca chamaríamos Lula a um presidente. Há em cada um de nós um pouco de mãe de Bragança, um pouco de bispo de Braga, um pouco de Manuela Ferreira Leite.
Enquanto os tropicais aguardam com alegria a festa do solstício, a bebedeira em nome duma divindade, as danças e os banhos tépidos ao luar, nós aguardamos por mais um ano de contenção, por mais últimos lugares no "ranking" da UE, por mais um discurso de Paulo Portas. Não há alegria que conviva com isto, não há optimismo que resista - e era isto que eu queria mudar. Era este o pedido à fada para 2004. Mas em Portugal não há fada, só há fado. E tudo é um fardo e um lamento pegado.
E por isso a nossa linguagem popular está crivada de queixumes e de preces à Virgem. E mesmo a esta, que devia ser sorriso e esperança, chamamos-lhe Senhora da Agonia, da Boa Morte, dos Aflitos, do Perpétuo Socorro. Só num país mesmo muito pessimista o socorro, em vez de ser uma coisa de surgimento súbito e relativamente rara, é perpétuo. (...)
Ufa! Alteremos, pois, este destino feito de seriedades e de gravidades. Vamos aligeirar, vamos descontrair o gesto, desenrugar a testa - em nome do futuro. Vamos, enfim, fazer uma interrupção voluntária da gravidade.
Por LUÍS FERNANDES. Público, 07/01/2004.
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